Guerras religiosas <br>em banda desenhada

Jorge Messias
Poderá parecer, à primeira vista, que a história dos car­toons dinamarqueses é leviana e brejeira, apenas se destinando a preencher vazios da opinião pública. Nada de mais errado. A intriga que se vai desdobrando contém germes de um brutal desenvolvimento das lutas no Médio Oriente e do seu inevitável alastramento a outras regiões do mundo. Será então possível que a memória da invasão do Iraque seja esquecida e se afogue no mar de sangue de outras guerras que ela própria originou.
Os avisos da existência destes riscos logo surgiram quando, anos atrás, houve indícios seguros de que os norte-americanos e os ingleses iriam invadir o Iraque, com ou sem aliados, a coberto ou a descoberto da ONU. Sabiam já que o monopólio do petróleo não se alcançaria com a ocupação militar de um só país. Outras agressões se imporiam depois, não só com o seu caudal de sofrimento e de miséria humana mas, também, com elevados riscos militares e económicos para o próprio agressor. A invasão do Iraque seria a matriz de conflitos futuros.
A natureza das guerras do Golfo, inicialmente de pura rapina, sem características de confronto entre religiões rivais, viria a evoluir no sentido do recurso ao discurso teológico que incita às lutas civis e religiosas, não importando as consequências do oportunismo da estratégia, com uma Europa como primeira vítima, sorte a que, mais tarde, os EUA não escapariam.
Há agora a certeza de que esta segunda fase da ofensiva imperialista está já em desenvolvimento. O capitalismo debate-se com uma crise económica que se agrava sem que os financeiros a consigam controlar. Sem guerras, o projecto da al­deia global revela-se impraticável. Sem o envolvimento europeu, o projecto dos pipe-lines não é realizável. Sem alternativa viável, à alta finança mundial só resta avançar. Mesmo que não possa controlar os riscos da sua sofreguidão.

O papel das re­li­giões

Este alastramento do teatro de operações já estava aliás contido nos discursos de Bush acerca do Eixo do Mal, do Ter­ro­rismo sem Rosto e do Di­reito à Guerra Pre­ven­tiva. Porque se viu que, ainda que com algumas falhas, o plano da ofensiva contra o Iraque foi minuciosamente preparado, sobretudo na área militar e na planificação financeira. O Iraque foi dominado pelos invasores ocidentais e, pelo menos nos primeiros meses, os lucros do petróleo pagaram os custos da invasão. No entanto, num aspecto os estrategas invasores foram inábeis: na questão da construção do casus belli legal e na previsão de uma situação táctica gravíssima, agora evidente no endurecimento da resistência popular, a exigir a intervenção maciça das potências ocidentais. Disse-se, no início, que a invasão se destinava a libertar da tirania o povo iraquiano, a derrubar a tirania, a desmantelar o arsenal das armas de destruição maciça e a promover a expansão do «mundo livre». Cedo se constatou que tudo isso era mentira.
É nesta fase da intriga que entram as religiões, os car­toons e a revisão tácita do grau de capacidade reconhecido às forças populares que reúnem crentes e laicos de todas as nações do Islão. Apoiada no povo, a resistência iraquiana não baixa os braços. E, por mais terrorismo interno que a CIA e o Pentágono promovam, sunitas e xiitas não se decidem a exterminar-se mutuamente, por razões de fé. Ao capitalismo importa, pois, jogar a fundo o trunfo dos ódios religiosos .
É assim que muito longe dos confins da Arábia, numa pequena e enevoada Dinamarca, em nome da liberdade de expressão como valor universal, vêm à baila os famosos car­toons. Instantaneamente, são reproduzidos em todo o Ocidente, embora se saiba que irão provocar reacções violentas entre os crentes. Dirigentes políticos e órgãos de comunicação diabolizam o Islão e enlameiam o que de mais sagrado há para um muçulmano. O Vaticano hesita, cala-se e gagueja. As poderosas federações e lob­bies da Reforma seguem o exemplo da Cúria Romana. Os israelitas lançam achas na fogueira. Onde falha a força bruta e a imposição pelo terror, é sempre possível voltar à jesuítica fórmula da oposição de valores, à reposição da regra que manda dividir para reinar e à revivificação do espírito das Cruzadas.
A contra-informação é cada vez mais uma eficiente arma de guerra. É o oposto da liberdade de expressão. Tem como objectivo a instalação da confusão e do medo. No plano militar, nas guerras do Iraque, de há muito que se fala na capacidade dos americanos em emitirem, em nome do inimigo, ordens e comunicados falsos. Esta capacidade, alargada à informação mundial, está a ser abundantemente utilizada neste caso dos car­toons, para acirrar ódios e confundir ideias.
Tudo, é claro, em nome da liberdade de expressão.


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